O universo gótico de Carson McCullers
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As aparências enganam. Criança solitária, pianista e concertista com carreira interrompida por febre reumática, Carson McCullers escolheu a literatura para extravasar seu enorme talento.
Sua imagem frágil não combina com a da transgressora temida que, ao escancarar em seus livros as hipocrisias escondidas debaixo dos tapetes da sociedade americana, viu-se ameaçada de morte pela Klu Klux Klan – a organização de extrema direita que incita o ódio racial e aos homossexuais.
A história de dois surdos-mudos - em "O coração é um caçador solitário" (The Heart is a lonely hunter”) - tornou Carson Mc Cullers famosa da noite para o dia.
Em 1967, John Huston adaptou para o cinema seu livro " Reflections in a golden eye” ( Reflexos em um olho dourado). No filme - “Os Pecados de Todos Nós”, na versão brasileira - Elizabeth Taylor e Marlon Brando protagonizam uma história de infidelidade, voyeurismo e homossexualidade reprimida que chocou os Estados Unidos.
Um casamento complicado - que terminou no suicídio do marido - também não faltou como fermento para fazer crescer o bolo. Receita não muito leve, que inclui pitadas de “esplendores” e “iluminações’, seguidas de períodos de trevas, onde “a alma se arrasava”.
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Lula Carson Smith nasceu em 19 de Fevereiro de 1917 em Columbus, Georgia, uma região conhecida como The Deep South - o Sul profundo.
Começou a estudar piano aos dez anos, para realizar os desejos da mãe, apaixonada por música e do pai, relojoeiro.
O diagnóstico de uma doença reumática progressiva interrompeu os planos e Carson resolveu canalizar seu potencial para a literatura.
Devoradora feroz das obras de Dostoyevski, Chekhov, Tolstoi e Eugene O'Neill, ainda adolescente escrevia peças teatrais.
Em 1933, decidida a ser escritora, parte para Nova York, onde teve seu primeiro conto, “Wunderkind”, publicado um ano depois. Não por acaso, trata-se da história de uma jovem pianista que perde o “dom “ musical durante a passagem da adolescência para a idade adulta.
O primeiro sucesso literário foi o estímulo para que Carson se matriculasse na Universidade de Columbia, em curso de redação criativa.
Esta relação mal resolvida com a carreira abandonada vai se apresentar sempre na estruturação de suas obras. As palavras eram escolhidas com cuidado, para que soassem como música.
O casamento
Pedida em casamento por James Reeves McCullers, seu colega na Universidade, o casal passou a morar no antigo apartamento de solteiro de James, em Charlotte, Carolina do Norte, onde foi escrito o texto “The Mute”.
Mc Cullers trouxe, além do novo sobrenome irlandês, mais problemas para as neuroses de Carson. Ambos eram bissexuais, mas as mulheres por quem Carson se apaixonava, costumavam rejeitá-la. Uma exceção foi Annemarie Schwarzenbach, que vivia entre a nata da sociedade e da intelectualidade de seu tempo, mas soube captar a essência de Carson, no curto tempo da relação que tiveram.
Havia o fantasma do alcoolismo rondando e uma competitividade intelectual de verdade, onde Carson era sempre vencedora com sua mente brilhante.
Carson, Reeves e o compositor David Diamond viveram uma relação triangular, cujo caráter obsessivo e não convencional foi o mais importante na vida afetiva de Carson e pontuou o tema central de sua obra : a solidão no amor.
Talento Reconhecido
Muito pouco editada em Português, as primeiras obras de Carson Mc Cullers saíram de um só fôlego : “The Heart Is a Lonely Hunter”, a história de dois surdos mudos, “Reflections on a Golden Eye” ( publicada em duas partes no “Harper’s Bazaar’), “The Ballad of the Sad Café” e ‘The Member of the wedding”.
Em março de 1942, recebeu sua primeira premiação - o “Guggenheeim Fellowship”. O projeto de usar o dinheiro do prêmio para se dedicar a escrever durante férias no México foi abandonado em virtude de sua frágil constituição física.
Iluminações e trevas
A história pessoal de Carson é das mais trágicas da literatura americana.
Sua problemática clínica e psicanalítica, preencheria vários prontuários médicos.
Períodos de “iluminações” e “esplendores”, de onde surgiam as obras clássicas do gótico sulista, eram seguidos de “trevas assustadoras” que a levavam a falar, seguidamente, em suicídio. A mãe de Carson acreditava que estas crises se deviam à excessiva leitura das obras de Dostoyewski.....
O casamento acabou em divórcio, houve um recasamento anos após e a conjugação de todo esse estresse resultou numa espécie de roda da fortuna com seus altos e baixos : honrarias literárias, prêmios, fama, depressão, mudança de domicílio para a França, honraria, prêmios literários, traqueostomia, aborto, delirium tremens, paralisia, ménages à trois, cancer, cadeira de rodas, derrame cerebral, mais prêmios e honrarias, mais depressão e assim por diante.
Esta trajetória cruel durou até 15 de Março de 1967, quando a escritora finalmente - para usar um chavão popular que se mostra bem apropriado -‘descansou”, semanas após completar 50 anos.
Gótico Sulista
Os contos fantásticos de terror, paranóias e loucuras de Edgar Allan Poe, foram a grande influência do movimento gótico - que remonta ao século XVI - na literatura norte-americana.
William Faulkner, Nobel de 1949, deu continuação aos romances psicológicos e simbólicos, tendo como palco o sul dos Estados Unidos.
A CASA NATAL |
Faziam parte do grupo de Carson Mc Cullers, entre outros : os escritores Eudora Welty, Flannery O’Connor, Truman Capote, T.S.Elliot e Isak Dinesen, a fotógrafa Diane Arbus e o pintor Francis Bacon, com as suas telas retratando seres distorcidos.
O imaginário de Carson - povoado de personagens auto-destrutivos, que se julgam monstruosos e extravagantes com suas insanidades, deformações e perplexidades e a bipolaridade luz/sombra – reflete esplendores e trevas, mundos entre os quais ela transitou como uma equilibrista apoiada num fino fio, a muitos metros de altura e sem rede de segurança.
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