Rua Batista das Neves,40-Rio Comprido,D.F.
Era assim que chegavam as cartas,telegramas,convites para casamentos,pedidos de empréstimo,amigos, amigos dos amigos,parentes,amigos dos parentes,amigos das empregadas,parentes das empregadas e mais quem viesse.
Todos sempre muito bem acolhidos e considerados;jamais ficavam sem resposta , calor humano e tratamento dentário grátis.
Casa grande,coração ainda maior. Nunca vi tanta generosidade e tanta solidariedade humana como nos meus queridos e gentis avós.
De uma prodigalidade que chegava às raias do exagero, eles pareciam viver para servir.
`A fidalguia gaúcha de bem receber, somavam seus dotes inigualáveis de despojamento e bom caráter.
Meu avô, médico pela Faculdade Mackenzie de São Paulo,foi para Filadélfia-EEUU, completar os créditos necessários para se graduar em Odontologia,na época uma especialidade da Medicina.
Tendo chegado aos Estados Unidos em plena Revolução Industrial, imagino que sua mente aberta tenha voado até alturas inimagináveis,sendo difícil,com certeza ,se readaptar à pequenina ,provinciana e esnobe Pelotas .
Esta temporada no exterior marcou-lhe a alma e ,na volta,nunca mais deve ter sido o mesmo .
Casou-se com minha avó,creio que só para honrar a palavra dada porque,tirando as qualidades do coração, nunca vi duas pessoas tão diversas.
Ele, ousado e expansivo,ela tímida e tradicional;ele esotérico e arrojado,ela carolíssima e acomodada.
Apesar das diferenças ,ou por causa delas,entendiam-se
maravilhosamente, pois a relação durou quase 50 anos,após os quais,vítima de leucemia ,morreu em 3 meses,ficando pequenininho como uma criança.
Ele ,que a meus olhos ,era a pessoa mais forte, poderosa e invulnerável do mundo. E imortal.
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Durante sua edificante e inesquecível vida entre nós, o vovô teve a oportunidade de exercer ,muito frequentemente ,os papéis que mais lhe agradavam: o de host ,o de gourmand e o de gourmet
Além da dúzia de moradores fixos,agregados e parentes de passagem hospedados em casa ou no Hotel Paysandu,onde ele "tomava"quartos e patrocinava as estadias,a casa era invadida aos domingos por comensais que vinham participar do almoço.
A função começava na sexta-feira,com as elocubrações sobre o cardápio.Coelho? Codorna? Coelho e codorna? Que tal um cordeirinho?
Ou,quem sabe,espetinhos de rins ao bacon?E como acompanhamento?Um suflê de aspargos, talvez,ou corações de alcachofra?
Ou tudo isso ao mesmo tempo,uma festa de Babette semanal que pude rememorar naquela tarde em Paris,vendo o filme que me remeteu à infância.?
Sábado pela manhã começava a peregrinacão em busca do material escolhido para a comilança.Ao Lidador Casa Carvalho,O Rei dos Cabritos,Confeitaria Colombo,Cavé,Lalet,mercadinhos, aviários,tudo era virado ao avesso.
Com monumentais embrulhos vínhamos ,meu avô e eu ,de taxi.
Em seguida a criadagem,a parentela e quem mais tivesse vindo,apreciava o inesquecível espetáculo do depenar das aves,do vinha d'alhos,do cronômetro marcando o tempo exato de cozimento de cada legume.
Essas tarefas eram executadas com a mesma perícia e pelas mesmas mãos competentes que vazavam abcessos,tratavam canais e extraíam sisos inclusos.
Na bancada de mármore cinza,que ficava na copa,minha avó dava sua colaboração para o banquete.
Caramelados, compotas de frutas,pudins,mousses e doces de ovos.
Altas horas da noite, acabada a trabalheira ,iam se deitar aliviados e de coração em paz. Podia chegar a infantaria que havia munição suficiente para a batalha.
Domingo ,finalmente!
As oito bocas do fogão a lenha não davam conta das panelas,caçarolas,frigideiras,conchas, facões,escorredores, raladores de queijo ,coadores,peneiras ,enorme quantidade de apetrechos trazidos dos Estados Unidos por meu tio Oswaldo,quando de sua estada para recuperação dos ferimentos da 2a. guerra mundial.
Usando tecnologia de ponta,competência culinária e genuína felicidade,o banquete saía divino.
Nós, crianças, ficávamos numa espécie de anexo da sala de jantar,não por comodismo ou falta de paciência para nos aturar,mas para que pudéssemos ficar à vontade, sem nenhum adulto enchendo o saco e controlando o consumo de garrafas de guaraná Caçula da Antártica.
Na grande mesa da sala de jantar vinha primeiro o oleado, depois a toalha bordada da Ilha da Madeira, a louça inglesa, os talheres de prata, os copos de cristal e ,então,o momento esperado por todos:o avô na cabeceira da mesa,feliz e realizado,vendo sua tribo reunida.
No outro fim de semana tudo se repetiria, e no outro, e no outro,até que o avô morreu, sem casa própria para abrigar a viúva.Ele que deu teto a tanta gente ordinária.....
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Penso nele todos os dias,desde aquele sábado chuvoso e abafado em que nos deixou,mesmo porque sei que ele está muito mais perto do que imagina a nossa vã filosofia.
Sua valiosíssima herança,pela qual ninguém briga, é o exemplo de dedicação ao próximo, a noção de que bens materiais são apenas bens materiais e,como tal, se esvaem.
E que, lá do outro lado da vida ,estão os verdadeiros valores.
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