Vida e morte do grande escritor e médico
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Uma
nuvem de fumaça paralisante e um silêncio ensurdecedor pairavam sobre
as redações dos jornais cariocas na noite de 13 de maio de 1984,após a
divulgação de um suicídio ocorrido naquele domingo `a noite numa praça
na Glória.
Um senhor de avançada idade e fisionomia bem conhecida foi encontrado morto perto de casa.
A
Glória é um bairro de classe média e média-alta no Rio de Janeiro e
deve seu nome à Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, uma das
primeiras construídas na cidade no século XVIII, onde são realizados
casamentos e batizados dos descendentes de Dom Pedro II.
Foi
chamada “ Saint-Germain-des-Près” carioca, porque alifuncionavam hotéis
de todas as tendências, frequentados por parlamentares em exercício
,antes da transferência da capital para Brasíla.
À noite existia –e atualmente continua existindo- um tradicional ponto de prostituição,frequentado basicamente por travestis.
À noite existia –e atualmente continua existindo- um tradicional ponto de prostituição,frequentado basicamente por travestis.
Era de Pedro Nava,o
grande escritor e memorialista,médico consagrado e unanimidade em se
tratando de bom caráter e retidão, o cadáver ali encontrado com um tiro
na cabeça,num banco de praça,junto ao relógio da Glória ,um dos marcos mais expressivos do Rio de Janeiro na República Velha.
Nava
e sua mulher ,dona Nieta, residiam na Glória,bem perto do relógio e,
naquela noite, após repassar com ela o discurso que faria ao receber
,dentro de poucos dias ,o tíitulo de Cidadão Carioca na Assembléia Legislativa,o telefone tocou
Dona
Nieta atendeu ,passou-lhe o aparelho.Nava ouviu em silêncio oque lhe
disseram, ficou visivelmente transtornado e comentou “ “nunca ouvi nada
tão obsceno”
Aproveitando
pequena distração da esposa, apanhou um revolver calibre 38 ,saiu pela
porta dos fundos do apartamento e perambulou durante horas pelo bairro.
Os
travestis e prostitutas que ali faziam ponto perceberam os últimos
passos do senhor triste e cabisbaixo, que `as 20.30 deu fim `a tão
fecunda e ilustre vida.
As investigações
Zuenir
Ventura,meu Mestre no curso de Jornalismo da UFRJ, na época editor
chefe de redação a revista ‘Isto É” conta, num capítulo inteiro de seu
livro “As minhas Histórias dos Outros (Editora Planeta,2005),que
no dia seguinte,segunda feira,começou apuração mais substancial porque
uma versão meio inconcebível circulava pelas redações.
Pedro Nava estaria sendo chantageado por um garoto de programa, o“Beto da Prado Júnior”.
As
investigações ,que tiveram como fonte um reporter gay,levaram a um
sujeito meio estranho,morando num “prédio horroroso,cabeça de
porco,corredores enormes, umas quinhentas portas”
Nava
passou a frequentar o local `as quartas feiras,quando, teoricamente,
estaria na reunião do Conselho de Cultura.Sentiu desejo de ser voyeur e
pediu uma terceira pessoa.
“Beto da Prado Junior” afirmava ter uma foto com o escritor e a estaria negociando com a revista “Manchete”.
Se a “Isto É’ desejasse a exclusividade, teria que pagar mais.
Amigos
de Nava procuraram dissuadir a editoria de publicar a versão,alegando
que o morto era um intelectual respeitado, tinha deixado viúva,parentes e
amigos perplexas.
Assim,a repercussão foi abortada.
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A tese de doutorado da professora francesa Monique LeMoing veio esclarecer tudo.Tornou-se um livro: “”A solidão Povoada” (Nova Fronteira,1996) que causou problemas com os descendentes de Nava mesmo tendo citado textos do prórprio autor.
“
Solidão Povoada”
Escreve Monique:
“Pedro
Nava acusava com violência os educadores, tanto os pais como os
mestres, que consideram a sexualidade como ‘tema tabu’, criando
complexos e até mesmo desvios sexuais; quando esta sexualidade — ele já
verificara como ser humano e como médico — é o nó da vida, o elemento
incontornável, que precisamos não somente reconhecer, mas aceitar e
respeitar tal como é”.
Monique pergunta:
“O que dizer das suposições emitidas depois da sua morte em relação a sua homossexualidade?”
E tenta responder, com cuidado:
“Sem
dar o menor crédito às maledicências e pondo de parte as tagarelices[
não podemos deixar de constatar ao longo da obra e nas suas declarações
aos jornalistas que Pedro Nava estava preocupado com este problema, que
já tinha pensado nele e que estava chegando a certas conclusões; que
para ele a homossexualidade não deveria ser considerada como desvio
sexual, nem como tabu, visto que ela está latente em cada homem, e que
acontece, que se manifesta de diversas formas nas relações humanas”.
O próprio Nava escreveu: “No
relacionamento de homem para homem, no estabelecimento de uma
confiança, de uma simpatia, de uma amizade — entra muito do terreno
neutro da sexualidade, de uma espécie, digamos, dessa homossexualidade
subclínica que habita os confins de todos. [...] Todo mundo atravessa um
período intersexual... a vida é foda: o resto é brincadeira”
Completa Monique;
“Dizia-se
que freqüentava certos meios homossexuais do Rio de Janeiro e ninguém
acreditava que ele fora capaz de ter uma vida dupla, que tinha sido
objeto de uma chantagem qualquer e compelido a um gesto de desespero”,
Biografiazinha despretensiosa
"Eu sou um pobre homem do Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais”
Parafraseando Eça,assim começa Pedro Nava o seu “Baú de Ossos”
Nasceu
em 5/6/1903 ,em Juiz de Fora-MG,fez seus estudos como interno do
Colégio Pedro II (como conta no “Chão de Ferro”)e formou-se em Medicina
pela (atual)Universidade Federal de Minas Gerais
Clinicou
no interior de São Paulo e, em 1933, mudou--se para o Rio onde
trabalhou em vários hospitais das rede pública e particular
Sua literatura médica está em.
*Território de Epidauro - Crônicas e Histórias da História da Medicina (1947) e
*Capítulos da História da Medicina no Brasil (1948).
Amigo de Carlos Drummond de Andrade e dos demais intelectuais
mineiros,participou da edição de A REVISTA, publicação modernista.
Como poeta,teve seus trabalhos publicados na Antologia de Poetas Bissextos (1948,organizada por Manuel Bandeira.
Pedro Nava não deve faltar em nenhuma estante sensível
*“Balão cativo”(1932) recebeu o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro
*“Baú de Ossos” (1972)recebeu o Prêmio Luísa Claudio de Sousa do Pen Club
Nava foi escolhido “Personalidade Global de 1973”pela Rede Globo e jornal O GLOBO
Prêmio Associação Paulista dos críticos de Arte (1974)
Como memorialista publicou ainda Balão Cativo (1973), Chão de Ferro (1976), Beira-Mar (1978), Galo das Trevas (1981) e O Círio Perfeito (1983)e o incompleto “Cera das Almas’ que iniciou pouco antes do suicídio.
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Com cerca de quatrocentas páginas cada um,eu já os li,reli,treli,quadrili e sei alguns trechos inteiros de cór.
E
como o admiro! Pela elegância, criatividade,pertinência,abertura de
mente,observação profunda do ser humano e pela enorme compaixão e
misericórdia que,grande médico, teve ocasião de exercer pelos seus
doentes.
Tenho
a certeza que nos nossos dias,com os fenômenos mediáticos, Pedro Nava
–geminiano de fé-certamente acolheria a internet, os IPods, tablets,IPhones,whats'upp,SMs,mini
cameras e etc .
E
que, com os novos parâmetros sociais e advertências sobre
chantagem,extorsão,calúnia e difamação agora tratados com atenção pelos
órgãos de direitos humanos e da comunidade LGBT, as coisas poderiam ter
terminado de forma bem diferente,
O chantagista teria sido capturado punido e execrado publicamente.
Meu
feeling, entretanto, é que ,oitentão nos anos oitenta e carente e
insone-como conta admiravelmente em um de seus livros,procurava algo
meio em falta mesmo nos dias de hoje: colocar um pouco de cor e de luz
em sua vida.
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Um comentário:
Thereza,
Também sou admirador da memorialística do Nava, simplesmente soberba e única. É pena que, de maneira geral, poucos se interessem em conhecer trabalhos tão vastos, tão popular e tão erudito ao mesmo tempo.
Daí a importância de ele (e sua obra) ser lembrado sempre, como você o fez em seu blog.
Obrigado por partilhar sua sensibilidade inteligente conosco !
Saúde a você e aos seus !
Humberto
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